Um livro, uma foto, uma entrevista, um bairro. Recortes do real. De frames da vida que nenhuma publicação, discurso ou linguagem consegue dar a ver por completo. Nem tudo cabe dentro dos limites do que se convencionou chamar de História. Recortes do imaginário. O desafio de reconstruir coletivamente um espaço a partir de novos olhares, narrativas, percursos. Do que se convencionou chamar de bairro. Das memórias de quem nunca teve sua importância olhada nos olhos. 

Em Belo Horizonte, convencionou-se contar o causo de uma cidade planejada. Mas para aonde será que foi tudo aquilo que ficou de fora da Contorno? Fora das páginas e fotografias que registraram a construção da metrópole que vinha para romper com a imagem do Império e reforçar a chegada da República. Dos mapas de Aarão Reis, que traçaram avenidas e palácios com pompas de Paris, mas que esqueceram de lembrar dos nomes daqueles que levantaram nos braços as calçadas e imóveis modernos da nova capital das Geraes. 

Foi de geração pra geração, que subia Bahia, descia Floresta e muitos quilômetros mais além, a pé. Foi pros cantos e rezas. Ou ficou guardado em gavetas. 

Foi pra debaixo da terra, junto dos rios que minavam e agora explodem o que há de concreto. Foi pro outro lado da Terra, no trem de ferro, com o minério que fez horizontais os que um dia foram nossos – e belos – horizontes. De tudo e de tanto(s), o que será que fica – e vale?

Sobre Santa Tereza convencionou-se dizer: bairro boêmio, tranquilo, acolhedor. Ruas pequenas, de clubes e esquinas. De bares, carnavais e ares de interior. Um bairro bem mineiro, que te recebe com café enquanto matuta revoluções – muitas delas para barrar a especulação imobiliária, que o está comendo pelas beiradas. Tem quem Salve Santa Tereza no grito, e há quem salve com palavras as memórias que Santa Tereza Tem. A especulação imobiliária é só uma das questões que avança os sinais vermelhos em alta velocidade nas ruelas do bairro. Os moradores as atravessam atentos, pois cada hora chega a notícia de um atropelo diferente. Já quiseram construir por lá o maior edifício da América Latina. Os tratores e máquinas já estavam a postos para botar de pé o empreendimento, às custas da desapropriação da comunidade Vila Dias, mas foram freados pela força dos movimentos sociais porque o projeto feria especificações urbanísticas da Área de Diretrizes Especiais. Por ser tombado pelo patrimônio cultural de Belo Horizonte, Santa Tereza possui uma série de normas específicas e uma delas define o limite de 15 metros de altura para os edifícios que quiserem se mudar pra lá.

No bairro há muitos espaços que decidiram desafiar o tempo, a lógica imobiliária imediatista e os cabelos brancos de seus vizinhos. Alguns deles conseguiram resistir e preservar características arquitetônicas do início do século XX, como o restaurante Bolão e o Cine Santa Tereza. Também é o caso do quase centenário Bar do Orlando, que fica ao redor de uma pracinha repleta de bares e restaurantes que movimentam as noites com música, petiscos e cerveja.

Periodicamente se reúnem ali rodas de capoeira, samba, batuque, coco e um pessoal que faz carnaval desde as antigas: o Bloco dos Pescadores, que convive com centenas de blocos que surgiram nos últimos anos em todos os cantos de BH.

Seu Orlando é quem comanda o lugar desde 1980. “Vendi tudo pra comprar o bar do meu tio. Até um fusquinha branco que eu dividia com meu irmão”, conta. Naquela época, Seu Orlando deixou Santa Luzia pra morar em uma casa nos fundos do bar, onde permanece com a família. “Naquele tempo não existia este muro, então, quando acabava o expediente, eu fechava aqui e ia dançar na casa do pessoal que me convidava, aqui na Favela do Cardoso, há 30, 35 anos atrás. Ali a gente dançava, tinha fogão a lenha, bolinho de feijão… era sossegado. Dançava de tudo, até coladinho. Era bom demais!” O muro a que Seu Orlando se refere foi construído para separar a rua da linha do metrô, durante as obras de construção da estação Santa Tereza, nos anos 1980. Fundada em 1993, a estação de metrô foi uma das grandes obras que alterou a circulação dos moradores, como também é o caso do viaduto que liga o bairro à avenida dos Andradas e das revitalizações da Praça Duque de Caxias.

O bar, que ainda tem portas e estantes da época em que foi fundado, no início do século XX, já teve pisos e o teto trocados, mas ainda mantém aquele clima de venda antiga. “Quando assumi o bar, eu comprava as mercadorias lá no Mercado Distrital. Ficava lotado. A gente via o pessoal carregando de tudo. E muitos paravam aqui pra ‘tomar uma’ antes ou depois. Hoje o mercado está aí, parado”, reflete Seu Orlando, que confessa sentir saudades daquele tempo. 

A nostalgia de Seu Orlando também acomete outros moradores - e não faltou nas canções do Clube da Esquina, movimento musical que nasceu no Santa Tereza e eternizou mundo afora alguns de seus costumes: “em volta desta mesa velhos e moços lembrando o que já foi. Em volta dessa mesa existem outras falando tão igual. Em volta dessas mesas existe a rua vivendo seu normal, em volta dessa rua uma cidade sonhando seus metais”.

“Meu clube é o quilombo.” Outro espaço que respira histórias, nostalgia e resistência, em Santa Tereza, é o Quilombo Souza. A comunidade foi reconhecida como quilombo apenas em 2019, um ano após quase sofrer um despejo. 

“Santa Tereza faz parte da gente. A família cresceu junto com o bairro. Minha bisavó veio pra cá pouco depois do nascimento do Santa Tereza. O bairro vai fazer 120 anos e o quilombo vai completar 100 anos logo depois”, celebra Gláucia Cristiane Martins, moradora do Quilombo Souza. 

Com muita luta e o apoio de movimentos sociais, a comunidade conseguiu manter de pé as bananeiras, pitangueiras, jabuticabeira e as casas que compõem a vila e sua história quase centenária. Gláucia lamenta que o reconhecimento tenha chegado só agora, mesmo a família tendo ajudado a construir BH. 

“Meu bisavô, Petronillo de Souza, trabalhou na construção da Igreja da Boa Viagem. Ele madrugava todos os dias e quem levava o almoço dele era minha bisavó, Eliza de Souza, que saía de Santa Tereza e cruzava a cidade a pé para levar a marmita até lá”. 

Gláucia mora no bairro desde que nasceu e diz que hoje Santa Tereza tem tudo o que ela precisa. “Quando eu era criança, aqui na rua, a gente brincava de rouba bandeira, polícia e ladrão, paribola, finca, papagaio, de pular corda... Era muita criança aqui na rua. E quando a gente voltava tomava banho naquelas bacias de metal, que minha avó deixava esquentando no sol pra dar banho na gente”. 

Gláucia conta que, naquela época, não havia água no quilombo e que também só havia luz na parte mais alta do bairro. E também foi só mais tarde que chegou o telefone. “Quando precisava, a gente usava o telefone de uma vizinha. Uma vez morreu um parente nosso no Rio [de Janeiro], mas não ficamos sabendo a tempo e ninguém conseguiu ir para o velório”.

Já na adolescência, Gláucia diz que a moda eram as matinês e os bailes do Oásis Clube, os footings na Praça Duque de Caxias, e, claro, o cinema. “No meu tempo o programa de domingo era ir ao cinema. Então, às vezes, o filme ficava em cartaz um mês e a gente assistia mesmo assim, até quatro vezes, porque era no bairro. Eu sempre acabava voltando pra lá”. 

Gláucia conta que, mesmo com tantas mudanças no tempo e no bairro, o quilombo manteve algumas tradições, como as festas de rua. Todo ano a comunidade se reúne para produzir a festa junina, por exemplo. No entanto, alguns costumes foram se perdendo. “Neste ano, na festa de Cosme Damião, fizemos brincadeiras com as crianças do bairro e elas não sabiam pular nem Amarelinha, acredita? Elas só ficam no celular, no vídeo game…”.

E Gláucia completa: “‘Eu não sou contra o progresso’, como diz a música do Roberto. Mas confesso que tenho muita saudade de algumas coisas, como as brincadeiras de rua e o clima de comunidade do bairro. (…) Com os novos tempos, Santa Tereza está ganhando uma nova cara, que não é tão bonita de se ver. Só olhando mais ao fundo, penetrando no bairro, é que se vê que ele se mantém como um bom lugar de se viver”.

Um livro, uma foto, uma entrevista, um bairro. Recortes do real. De frames da vida que nenhuma publicação, discurso ou linguagem consegue dar a ver por completo. Nem tudo cabe dentro dos limites do que se convencionou chamar de História. Recortes do imaginário. O desafio de reconstruir coletivamente um espaço a partir de novos olhares, narrativas, percursos. Do que se convencionou chamar de bairro. Das memórias de quem nunca teve sua importância olhada nos olhos. 

Em Belo Horizonte, convencionou-se contar o causo de uma cidade planejada. Mas para aonde será que foi tudo aquilo que ficou de fora da Contorno? Fora das páginas e fotografias que registraram a construção da metrópole que vinha para romper com a imagem do Império e reforçar a chegada da República. Dos mapas de Aarão Reis, que traçaram avenidas e palácios com pompas de Paris, mas que esqueceram de lembrar dos nomes daqueles que levantaram nos braços as calçadas e imóveis modernos da nova capital das Geraes. 

Foi de geração pra geração, que subia Bahia, descia Floresta e muitos quilômetros mais além, a pé. Foi pros cantos e rezas. Ou ficou guardado em gavetas. 

Foi pra debaixo da terra, junto dos rios que minavam e agora explodem o que há de concreto. Foi pro outro lado da Terra, no trem de ferro, com o minério que fez horizontais os que um dia foram nossos – e belos – horizontes. De tudo e de tanto(s), o que será que fica – e vale?

Sobre Santa Tereza convencionou-se dizer: bairro boêmio, tranquilo, acolhedor. Ruas pequenas, de clubes e esquinas. De bares, carnavais e ares de interior. Um bairro bem mineiro, que te recebe com café enquanto matuta revoluções – muitas delas para barrar a especulação imobiliária, que o está comendo pelas beiradas. Tem quem Salve Santa Tereza no grito, e há quem salve com palavras as memórias que Santa Tereza Tem. A especulação imobiliária é só uma das questões que avança os sinais vermelhos em alta velocidade nas ruelas do bairro. Os moradores as atravessam atentos, pois cada hora chega a notícia de um atropelo diferente. Já quiseram construir por lá o maior edifício da América Latina. Os tratores e máquinas já estavam a postos para botar de pé o empreendimento, às custas da desapropriação da comunidade Vila Dias, mas foram freados pela força dos movimentos sociais porque o projeto feria especificações urbanísticas da Área de Diretrizes Especiais. Por ser tombado pelo patrimônio cultural de Belo Horizonte, Santa Tereza possui uma série de normas específicas e uma delas define o limite de 15 metros de altura para os edifícios que quiserem se mudar pra lá.

No bairro há muitos espaços que decidiram desafiar o tempo, a lógica imobiliária imediatista e os cabelos brancos de seus vizinhos. Alguns deles conseguiram resistir e preservar características arquitetônicas do início do século XX, como o restaurante Bolão e o Cine Santa Tereza. Também é o caso do quase centenário Bar do Orlando, que fica ao redor de uma pracinha repleta de bares e restaurantes que movimentam as noites com música, petiscos e cerveja.

Periodicamente se reúnem ali rodas de capoeira, samba, batuque, coco e um pessoal que faz carnaval desde as antigas: o Bloco dos Pescadores, que convive com centenas de blocos que surgiram nos últimos anos em todos os cantos de BH.

Seu Orlando é quem comanda o lugar desde 1980. “Vendi tudo pra comprar o bar do meu tio. Até um fusquinha branco que eu dividia com meu irmão”, conta. Naquela época, Seu Orlando deixou Santa Luzia pra morar em uma casa nos fundos do bar, onde permanece com a família. “Naquele tempo não existia este muro, então, quando acabava o expediente, eu fechava aqui e ia dançar na casa do pessoal que me convidava, aqui na Favela do Cardoso, há 30, 35 anos atrás. Ali a gente dançava, tinha fogão a lenha, bolinho de feijão… era sossegado. Dançava de tudo, até coladinho. Era bom demais!” O muro a que Seu Orlando se refere foi construído para separar a rua da linha do metrô, durante as obras de construção da estação Santa Tereza, nos anos 1980. Fundada em 1993, a estação de metrô foi uma das grandes obras que alterou a circulação dos moradores, como também é o caso do viaduto que liga o bairro à avenida dos Andradas e das revitalizações da Praça Duque de Caxias.

O bar, que ainda tem portas e estantes da época em que foi fundado, no início do século XX, já teve pisos e o teto trocados, mas ainda mantém aquele clima de venda antiga. “Quando assumi o bar, eu comprava as mercadorias lá no Mercado Distrital. Ficava lotado. A gente via o pessoal carregando de tudo. E muitos paravam aqui pra ‘tomar uma’ antes ou depois. Hoje o mercado está aí, parado”, reflete Seu Orlando, que confessa sentir saudades daquele tempo. 

A nostalgia de Seu Orlando também acomete outros moradores - e não faltou nas canções do Clube da Esquina, movimento musical que nasceu no Santa Tereza e eternizou mundo afora alguns de seus costumes: “em volta desta mesa velhos e moços lembrando o que já foi. Em volta dessa mesa existem outras falando tão igual. Em volta dessas mesas existe a rua vivendo seu normal, em volta dessa rua uma cidade sonhando seus metais”.

“Meu clube é o quilombo.” Outro espaço que respira histórias, nostalgia e resistência, em Santa Tereza, é o Quilombo Souza. A comunidade foi reconhecida como quilombo apenas em 2019, um ano após quase sofrer um despejo. 

“Santa Tereza faz parte da gente. A família cresceu junto com o bairro. Minha bisavó veio pra cá pouco depois do nascimento do Santa Tereza. O bairro vai fazer 120 anos e o quilombo vai completar 100 anos logo depois”, celebra Gláucia Cristiane Martins, moradora do Quilombo Souza. 

Com muita luta e o apoio de movimentos sociais, a comunidade conseguiu manter de pé as bananeiras, pitangueiras, jabuticabeira e as casas que compõem a vila e sua história quase centenária. Gláucia lamenta que o reconhecimento tenha chegado só agora, mesmo a família tendo ajudado a construir BH. 

“Meu bisavô, Petronillo de Souza, trabalhou na construção da Igreja da Boa Viagem. Ele madrugava todos os dias e quem levava o almoço dele era minha bisavó, Eliza de Souza, que saía de Santa Tereza e cruzava a cidade a pé para levar a marmita até lá”. 

Gláucia mora no bairro desde que nasceu e diz que hoje Santa Tereza tem tudo o que ela precisa. “Quando eu era criança, aqui na rua, a gente brincava de rouba bandeira, polícia e ladrão, paribola, finca, papagaio, de pular corda... Era muita criança aqui na rua. E quando a gente voltava tomava banho naquelas bacias de metal, que minha avó deixava esquentando no sol pra dar banho na gente”. 

Gláucia conta que, naquela época, não havia água no quilombo e que também só havia luz na parte mais alta do bairro. E também foi só mais tarde que chegou o telefone. “Quando precisava, a gente usava o telefone de uma vizinha. Uma vez morreu um parente nosso no Rio [de Janeiro], mas não ficamos sabendo a tempo e ninguém conseguiu ir para o velório”.

Já na adolescência, Gláucia diz que a moda eram as matinês e os bailes do Oásis Clube, os footings na Praça Duque de Caxias, e, claro, o cinema. “No meu tempo o programa de domingo era ir ao cinema. Então, às vezes, o filme ficava em cartaz um mês e a gente assistia mesmo assim, até quatro vezes, porque era no bairro. Eu sempre acabava voltando pra lá”. 

Gláucia conta que, mesmo com tantas mudanças no tempo e no bairro, o quilombo manteve algumas tradições, como as festas de rua. Todo ano a comunidade se reúne para produzir a festa junina, por exemplo. No entanto, alguns costumes foram se perdendo. “Neste ano, na festa de Cosme Damião, fizemos brincadeiras com as crianças do bairro e elas não sabiam pular nem Amarelinha, acredita? Elas só ficam no celular, no vídeo game…”.

E Gláucia completa: “‘Eu não sou contra o progresso’, como diz a música do Roberto. Mas confesso que tenho muita saudade de algumas coisas, como as brincadeiras de rua e o clima de comunidade do bairro. (…) Com os novos tempos, Santa Tereza está ganhando uma nova cara, que não é tão bonita de se ver. Só olhando mais ao fundo, penetrando no bairro, é que se vê que ele se mantém como um bom lugar de se viver”.

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