Quanto tempo dura um bairro? Quanto tempo dura um bairro em nós? Quem sabe o tempo entre “felizes para sempre” e “até que a morte nos separe”? Quem sabe o tempo de uma fortuna, de uma necessidade, o tempo de uma foto amarelar – ou ser apagada. O tempo da espera do ônibus ou do bonde, da mensagem ou carta não respondida, da história não vivida, o tempo do bloco de carnaval passar (e nos fazer multidão).
Quiçá ainda o tempo de dar conta que o bairro existe primeiro do lado de dentro. E que pode atravessar gerações nos interiores do mesmo peito.
A verdade é que os bairros nunca morrem. Mas viajam pelos pés dos que ali passam. Esses, sim, acabam levando muito do que deixa saudades nas gentes que gostam de ganhar tempo observando a vida por janelas – e pelo que jaz(z) nelas.
Às vezes, para descobrir uma casa ou um bairro é necessário mudar-se antes para dentro de si mesmo e só assim abrir as portas do aprender a caber ali. O importante é não ficar só na fachada.
Fachada é o que não falta na Savassi, bairro localizado em uma das mais antigas regiões de Belo Horizonte. Nas últimas décadas, seus moradores viram dezenas dos seus casarões darem lugar a edifícios contornados por vidros e espelhos, cercas elétricas e estacionamentos. Do que era casa restou somente a capa. Comandado por construtoras e pela intensa especulação imobiliária, este processo não apenas derrubou casas (muitas delas tombadas como patrimônio da cidade), mas soterrou memórias de toda uma época.
Leonora Weissmann tem 38 anos e mora desde o nascimento no bairro. Ela e a mãe, Selma Weissmann, acompanharam de perto estas transformações na Savassi. Elas abriram a porta da casa em que vivem, na Rua Paraíba, para contar um pouco da relação delas com o que há da porta pra dentro e com o que as atravessa ao sair nas ruas.
“Aqui era totalmente, 90%, residencial. De repente, virou uma extensão do Centro. Destruíram a casa dos nossos amigos, a vila que tinha aqui no quarteirão, na [Rua] Rio Grande do Norte. É uma pena. Na vila moravam umas 20 famílias. Fiquei muito triste, até sonhei com esta vila em ruínas”, conta Leonora, que também é muito conhecida pelo apelido de Loló.
“Lá tinha um portão de ferro que sinto o cheiro dele até hoje. Era um portão de ferro maravilhoso, difícil de abrir, com tramela. Aí você descia uma escadinha, já virava, e depois virava de novo e era uma vila incrível de casinhas, parecia uma praça. Eu tinha dois grandes amigos que moravam lá, Leo e Lili. O Leo era ator mirim. Eram artistas amigos, artistas mirins, cineastas. Tinha festas que aconteciam lá dentro. E faz uns seis anos que eles destruíram a vila e construíram um prédio horroroso”, lamenta.
Selma diz que os amigos dos seus filhos gostavam muito de ir pra casa dela, por conta do atelier, sempre cheio de cores, da convivência com os artistas da família, do clima alegre. Segundo ela, a vila também era um lugar único.
“Você acredita que tinha um leão na vila? Um moço pegou um leão filhotinho e criou na casinha dele. Os meninos, Loló e meu filho, sempre falavam sobre ‘o leão do fulano’. E eu achava que era um cachorro chamado Leão. Quando vi a foto era um leão, mesmo! E o cara acabou tendo que vender ou doar pra um circo porque o leão estava comendo demais e estava ficando caríssimo. Eles cresceram com este leão lá na vila. Sou doida pra arrumar uma foto”.
Para Leonora, pensar em Savassi é lembrar da infância.
“Aqui eu brincava de bicicleta, de carrinho de rolimã, de skate. Brincava muito na rua. E agora meus filhos não têm mais isso, não, né. A gente brincava com água, com mangueira aqui na porta, de caçar morcego na [Rua] Tomé de Souza. Ali tem umas árvores gigantescas, do Barão [do Rio Branco]. Eu estudei no Bueno [Brandão]. Quando saía já ficava na porta, pulando elástico, brincando direto. Depois, vinha pra vila. Depois, vinha pra cá. Tinha vários amigos, então a gente ficava caçando morcego lá, nestes fícus, essas árvores deslumbrantes. Fico pensando muito nelas. Outro dia caiu uma ali. Não sei se por falta de manutenção... Cada hora eles vêm com uma desculpa. Cortaram outra que tinha na frente do Bueno, que era clássica, gigantesca. E cortaram. Fui até lá pra reclamar. Teve uma que caiu. Ficou estalando um mês! O chão quebrando... de repente, a gente ouviu um barulho. Parecia um avião. Ela foi quebrando o chão, os encanamentos... por sorte deu tempo de as pessoas correrem. Era centenária, devia estar aqui antes da cidade”.
Selma também lembra da infância divertida, de quando entregavam leite na porta e passavam pela rua vendendo esterco e até dobradinha, mas diz que as lembranças mais fortes do bairro remetem, mesmo, à sua família. “Lembro que tinha o bonde…. Claro, o Bonde Pernambuco. E aqui embaixo passava um rio, na [Rua] Professor Moraes. Ainda passa, mas agora por baixo, né. Era um córrego. Lembro que, quando tinha tempestade de noite, ele tinha um murinho de cimento e a gente ficava lá pra ver o que vinha na enxurrada: vinham caixas, folhas grandes. Quando vinha um gato morto era uma festa. ‘Olha o gato morto!’ Era uma maravilha quando tinha um gato morto”.
Ela também brincava muito na rua e sempre visitava os parentes que moravam no bairro. “Eles moravam nos principais pontos daqui. Ali onde é o Mc Donalds era minha tia. Este quarteirão quase inteiro era das minhas tias. Os meus avós moravam na [Rua] Tomé de Souza com [Avenida] Getúlio Vargas. Era uma casa linda, antiga, que também demoliram. A casa era um castelinho. Eu também lembro muito da infância com os primos. Outro dia descobri uma foto desta casa na internet e mandei pra eles”.
Leonora também tem frescas as lembranças das visitas familiares: “só convivi com a vovó Antonieta ali. Era uma casa deslumbrante, mas, assim, neocolonial. Não era tão antiga, já era meio moderna, toda de mármore, com um banheiro de mármore preto. Ela ficava ali, onde foi um tempo aquele restaurante Mandala, depois fizeram a Casa Goya, acho. [...]
[...] Depois, transformaram em um prédio horrível, preto. Ela ficava na [Rua] Fernandes Tourinho com [Avenida] Getúlio Vargas. Era uma casa branca, uma coisa! Deslumbrante! Uma obra de arte! Tinha até porão, banheiro de duas portas, um banheiro todo negro, uma coisa de sonho. E também acabou. Esta eu achei que iam tombar”.
Selma completa: “tinha até cofre. Aqui na frente tinha palacetes maravilhosos - a casa da Cecília, da Dona Dulce. Eram palacetes, mesmo, parecendo coisa de filme, de Hollywood. Casas de pedra, com piscina atrás, com pinheiros grandes, um sonho!”
A casa delas também seguia alguns padrões da época e das famílias mais abastadas da região, como detalha Selma: “esta casa tinha sala de visitas que era da minha mãe. Ela adorava a sala de visitas. Isso é uma coisa antiga, parece de romance. A gente, pra ir na sala de visitas, tinha que ir arrumadinho. Não dava pra ir de pijama, não. Tinha uma salinha reservada. A casa era linda. Mas realmente muito dispendiosa. Fora de moda. Tinha muita cortina pesada, móveis de veludo, sofás de veludo canelado, uma coisa muito pesada. Depois eu modifiquei ela muito, a casa mudou muito. Não tem mais o jardim... E depois a Loló fez um apartamento com dois quartos, que ficou ótimo”.
As duas falam com nostalgia de alguns aspectos do bairro que ficaram nos idos do tempo, como a tranquilidade e a baixa circulação de veículos. Nos anos 1960 e 1970, o bairro se destacou pela profusão de lojas chiques, especialmente de roupas e sapatos. Elas permitiram que seus moradores evitassem o Centro da cidade, que sempre foi bastante movimentado.
Segundo elas, nas últimas décadas, houve um boom de carros, lojas, bares e pessoas, como comenta Selma: “aqui é interessante. São pessoas elegantes que você encontra ali [na Praça da Savassi] ainda. E muitas lojas. E dá de tudo. Inclusive, tem muito mendigo na rua, os meninos na rua, coitados. Uma tristeza. Ao mesmo tempo, pessoas muito elegantes, muto chiques, fazendo compras no shopping. A diferença social realmente é muito chocante aqui”, reflete Selma.
“Fico achando que uma hora aqui vai ficar igual ao Centro. Sempre achei isso. Ainda não virou, não. O Pátio [Savassi] deu um status também, né. É um shopping mais elitista. Antes, tinha o Central Shopping... a gente descia, ia lá tomar sorvete. Ali era uma ponte Savassi-Centro. E acabou. Então, ainda é separado, né. Mas é bem próximo. Morar aqui é muito bom. A gente desce a pé pro Palácio [das Artes], a gente faz tudo a pé”, comenta Leonora.
Selma concorda e acrescenta que, logo que o número de veículos começou a crescer muito, ela decidiu vender o carro e construir uma loja no lugar da garagem. “Foi nos anos 1980 isso. Realmente, eu não preciso de carro aqui. Tenho tudo perto: banco, restaurante, farmácia”.
Mãe e filha seguem comentando as mudanças que fizeram a Savassi de hoje. Leonora diz que, antes, o bairro era mais espontâneo, tinha festa junina na rua, feirinhas e que nos últimos tempos foi tomado por festas grandes, muito produzidas, com grades em volta.
Elas são categóricas em dizer que o bairro também andou ficando mais violento. Segundo Leonora, durante a adolescência, ela varava madrugadas pelas ruas da Savassi, mas agora não anda mais por lá tão tarde porque tem medo. Ela diz que o bairro também ficou mais populoso e, consequentemente, movimentado.
“Tem uns vídeos da gente criança, que meu pai fez aqui na rua, que passava um carro. Era bem calmo. Um lugar muito calmo. Escolar, né. Era uma área de escolas. Não tinha muito carro, não. A gente brincava na rua. Agora, cada prédio ali tem cinco vagas por morador. A [Rua] Paraíba virou uma rua movimentada. É um absurdo isso de cinco vagas, né. Inclusive, naquele tempo, a escola tinha muro baixo, era tudo muro baixo, você via tudo lá dentro. Foi lá pela década de 1990 que subiu tudo. Nos anos 1980 a gente pulava os muros do Bueno [Brandão]. Era até perigosíssimo porque a gente pulava e era cheio de espetos, né. Rolavam até uns acidentes, mas a gente era bem mais livre. A gente interagia com o lado de fora, agora não dá pra ver mais nada”, diz Leonora.
Selma fala que as escolas estaduais Bueno Brandão e Barão do Rio Branco são referências importantes não só para o bairro, mas para a história da família.
“Era linda a escola. Bueno e o Mercado Central eram da mesma época, tinham a mesma arquitetura. Eles chamavam de telha de ardósia, não sei muito bem como é isso, mas na Europa tem muito. Minha mãe foi professora lá e dizia que era infernal porque as paredes de dentro eram de madeira, eram biombos, e iam só até certa altura. Então, era uma barulhada pra dar aula lá. Você escutava os outros professores dando aula. Dizem que era um inferno. Depois, ela aposentou, mas ficou lá anos”.
Leonora ri da história e emenda: “é uma sorte ter o Bueno e o Barão aqui. Um quarteirão todo arborizado, com barulho de crianças, que faz parte do imaginário daqui. Tem também o sinal do Bueno. Antes eu ouvia todos. Agora, só às vezes você ouve um resquício do sinal, de tanto barulho de construção. Antes eu ouvia aqui dentro. Eu acordava de manhã com o sinal, arrumava rápido pra ir pra escola. Eu acordava com o sinal”, se diverte Loló.
Essa questão do barulho é notável na Savassi. Com tradição para cafés, bares, lojas, boates, festivais e carnavais, algumas áreas do bairro parecem sempre agitadas. No entanto, o burburinho do lazer tem sido abafado pelas obras que atravessam paredes e fazem subir muros que ultrapassam as montanhas da cidade. Em 2011, o bairro passou por uma grande obra de reestruturação que mudou as feições da Praça Diogo de Vasconcelos (que todos conhecem como Praça da Savassi), mas pelo menos recebeu uma ciclovia.
Selma lamenta como os prédios e a constância das obras mudaram os horizontes visuais e sonoros do bairro. “Eu ouvia de noite, mais tarde, o barulho do trem lá na Praça da Estação. Ouvia aquele apito do trem. E quando tinha carnaval aqui no Minas [Tênis Clube] I, dava pra gente ouvir o batucado daqui de casa também. Agora é obra o tempo inteiro. Ali atrás do meu quarto estão construindo um prédio gigantesco. Em breve eu vou abrir a janela e vou ver um paredão”.
Ela lembra com saudades do tempo em que o bairro tinha só casas e que dava pra sentir, no vento, o cheirinho do pão assado na Padaria Savassi, que deu nome à região. “Era muito gostoso. Ali também era o point, era muito interessante. Eu acho que até continua sendo. Eu gosto de morar aqui”.
Quanto tempo dura um bairro? Quanto tempo dura um bairro em nós? Quem sabe o tempo entre “felizes para sempre” e “até que a morte nos separe”? Quem sabe o tempo de uma fortuna, de uma necessidade, o tempo de uma foto amarelar – ou ser apagada. O tempo da espera do ônibus ou do bonde, da mensagem ou carta não respondida, da história não vivida, o tempo do bloco de carnaval passar (e nos fazer multidão).
Quiçá ainda o tempo de dar conta que o bairro existe primeiro do lado de dentro. E que pode atravessar gerações nos interiores do mesmo peito.
A verdade é que os bairros nunca morrem. Mas viajam pelos pés dos que ali passam. Esses, sim, acabam levando muito do que deixa saudades nas gentes que gostam de ganhar tempo observando a vida por janelas – e pelo que jaz(z) nelas.
Às vezes, para descobrir uma casa ou um bairro é necessário mudar-se antes para dentro de si mesmo e só assim abrir as portas do aprender a caber ali. O importante é não ficar só na fachada.
Fachada é o que não falta na Savassi, bairro localizado em uma das mais antigas regiões de Belo Horizonte. Nas últimas décadas, seus moradores viram dezenas dos seus casarões darem lugar a edifícios contornados por vidros e espelhos, cercas elétricas e estacionamentos. Do que era casa restou somente a capa. Comandado por construtoras e pela intensa especulação imobiliária, este processo não apenas derrubou casas (muitas delas tombadas como patrimônio da cidade), mas soterrou memórias de toda uma época.
Leonora Weissmann tem 38 anos e mora desde o nascimento no bairro. Ela e a mãe, Selma Weissmann, acompanharam de perto estas transformações na Savassi. Elas abriram a porta da casa em que vivem, na Rua Paraíba, para contar um pouco da relação delas com o que há da porta pra dentro e com o que as atravessa ao sair nas ruas.
“Aqui era totalmente, 90%, residencial. De repente, virou uma extensão do Centro. Destruíram a casa dos nossos amigos, a vila que tinha aqui no quarteirão, na [Rua] Rio Grande do Norte. É uma pena. Na vila moravam umas 20 famílias. Fiquei muito triste, até sonhei com esta vila em ruínas”, conta Leonora, que também é muito conhecida pelo apelido de Loló.
“Lá tinha um portão de ferro que sinto o cheiro dele até hoje. Era um portão de ferro maravilhoso, difícil de abrir, com tramela. Aí você descia uma escadinha, já virava, e depois virava de novo e era uma vila incrível de casinhas, parecia uma praça. Eu tinha dois grandes amigos que moravam lá, Leo e Lili. O Leo era ator mirim. Eram artistas amigos, artistas mirins, cineastas. Tinha festas que aconteciam lá dentro. E faz uns seis anos que eles destruíram a vila e construíram um prédio horroroso”, lamenta.
Selma diz que os amigos dos seus filhos gostavam muito de ir pra casa dela, por conta do atelier, sempre cheio de cores, da convivência com os artistas da família, do clima alegre. Segundo ela, a vila também era um lugar único.
“Você acredita que tinha um leão na vila? Um moço pegou um leão filhotinho e criou na casinha dele. Os meninos, Loló e meu filho, sempre falavam sobre ‘o leão do fulano’. E eu achava que era um cachorro chamado Leão. Quando vi a foto era um leão, mesmo! E o cara acabou tendo que vender ou doar pra um circo porque o leão estava comendo demais e estava ficando caríssimo. Eles cresceram com este leão lá na vila. Sou doida pra arrumar uma foto”.
Para Leonora, pensar em Savassi é lembrar da infância.
“Aqui eu brincava de bicicleta, de carrinho de rolimã, de skate. Brincava muito na rua. E agora meus filhos não têm mais isso, não, né. A gente brincava com água, com mangueira aqui na porta, de caçar morcego na [Rua] Tomé de Souza. Ali tem umas árvores gigantescas, do Barão [do Rio Branco]. Eu estudei no Bueno [Brandão]. Quando saía já ficava na porta, pulando elástico, brincando direto. Depois, vinha pra vila. Depois, vinha pra cá. Tinha vários amigos, então a gente ficava caçando morcego lá, nestes fícus, essas árvores deslumbrantes. Fico pensando muito nelas. Outro dia caiu uma ali. Não sei se por falta de manutenção... Cada hora eles vêm com uma desculpa. Cortaram outra que tinha na frente do Bueno, que era clássica, gigantesca. E cortaram. Fui até lá pra reclamar. Teve uma que caiu. Ficou estalando um mês! O chão quebrando... de repente, a gente ouviu um barulho. Parecia um avião. Ela foi quebrando o chão, os encanamentos... por sorte deu tempo de as pessoas correrem. Era centenária, devia estar aqui antes da cidade”.
Selma também lembra da infância divertida, de quando entregavam leite na porta e passavam pela rua vendendo esterco e até dobradinha, mas diz que as lembranças mais fortes do bairro remetem, mesmo, à sua família. “Lembro que tinha o bonde…. Claro, o Bonde Pernambuco. E aqui embaixo passava um rio, na [Rua] Professor Moraes. Ainda passa, mas agora por baixo, né. Era um córrego. Lembro que, quando tinha tempestade de noite, ele tinha um murinho de cimento e a gente ficava lá pra ver o que vinha na enxurrada: vinham caixas, folhas grandes. Quando vinha um gato morto era uma festa. ‘Olha o gato morto!’ Era uma maravilha quando tinha um gato morto”.
Ela também brincava muito na rua e sempre visitava os parentes que moravam no bairro. “Eles moravam nos principais pontos daqui. Ali onde é o Mc Donalds era minha tia. Este quarteirão quase inteiro era das minhas tias. Os meus avós moravam na [Rua] Tomé de Souza com [Avenida] Getúlio Vargas. Era uma casa linda, antiga, que também demoliram. A casa era um castelinho. Eu também lembro muito da infância com os primos. Outro dia descobri uma foto desta casa na internet e mandei pra eles”.
Leonora também tem frescas as lembranças das visitas familiares: “só convivi com a vovó Antonieta ali. Era uma casa deslumbrante, mas, assim, neocolonial. Não era tão antiga, já era meio moderna, toda de mármore, com um banheiro de mármore preto. Ela ficava ali, onde foi um tempo aquele restaurante Mandala, depois fizeram a Casa Goya, acho. [...]
[...] Depois, transformaram em um prédio horrível, preto. Ela ficava na [Rua] Fernandes Tourinho com [Avenida] Getúlio Vargas. Era uma casa branca, uma coisa! Deslumbrante! Uma obra de arte! Tinha até porão, banheiro de duas portas, um banheiro todo negro, uma coisa de sonho. E também acabou. Esta eu achei que iam tombar”.
Selma completa: “tinha até cofre. Aqui na frente tinha palacetes maravilhosos - a casa da Cecília, da Dona Dulce. Eram palacetes, mesmo, parecendo coisa de filme, de Hollywood. Casas de pedra, com piscina atrás, com pinheiros grandes, um sonho!”
A casa delas também seguia alguns padrões da época e das famílias mais abastadas da região, como detalha Selma: “esta casa tinha sala de visitas que era da minha mãe. Ela adorava a sala de visitas. Isso é uma coisa antiga, parece de romance. A gente, pra ir na sala de visitas, tinha que ir arrumadinho. Não dava pra ir de pijama, não. Tinha uma salinha reservada. A casa era linda. Mas realmente muito dispendiosa. Fora de moda. Tinha muita cortina pesada, móveis de veludo, sofás de veludo canelado, uma coisa muito pesada. Depois eu modifiquei ela muito, a casa mudou muito. Não tem mais o jardim... E depois a Loló fez um apartamento com dois quartos, que ficou ótimo”.
As duas falam com nostalgia de alguns aspectos do bairro que ficaram nos idos do tempo, como a tranquilidade e a baixa circulação de veículos. Nos anos 1960 e 1970, o bairro se destacou pela profusão de lojas chiques, especialmente de roupas e sapatos. Elas permitiram que seus moradores evitassem o Centro da cidade, que sempre foi bastante movimentado.
Segundo elas, nas últimas décadas, houve um boom de carros, lojas, bares e pessoas, como comenta Selma: “aqui é interessante. São pessoas elegantes que você encontra ali [na Praça da Savassi] ainda. E muitas lojas. E dá de tudo. Inclusive, tem muito mendigo na rua, os meninos na rua, coitados. Uma tristeza. Ao mesmo tempo, pessoas muito elegantes, muto chiques, fazendo compras no shopping. A diferença social realmente é muito chocante aqui”, reflete Selma.
“Fico achando que uma hora aqui vai ficar igual ao Centro. Sempre achei isso. Ainda não virou, não. O Pátio [Savassi] deu um status também, né. É um shopping mais elitista. Antes, tinha o Central Shopping... a gente descia, ia lá tomar sorvete. Ali era uma ponte Savassi-Centro. E acabou. Então, ainda é separado, né. Mas é bem próximo. Morar aqui é muito bom. A gente desce a pé pro Palácio [das Artes], a gente faz tudo a pé”, comenta Leonora.
Selma concorda e acrescenta que, logo que o número de veículos começou a crescer muito, ela decidiu vender o carro e construir uma loja no lugar da garagem. “Foi nos anos 1980 isso. Realmente, eu não preciso de carro aqui. Tenho tudo perto: banco, restaurante, farmácia”.
Mãe e filha seguem comentando as mudanças que fizeram a Savassi de hoje. Leonora diz que, antes, o bairro era mais espontâneo, tinha festa junina na rua, feirinhas e que nos últimos tempos foi tomado por festas grandes, muito produzidas, com grades em volta.
Elas são categóricas em dizer que o bairro também andou ficando mais violento. Segundo Leonora, durante a adolescência, ela varava madrugadas pelas ruas da Savassi, mas agora não anda mais por lá tão tarde porque tem medo. Ela diz que o bairro também ficou mais populoso e, consequentemente, movimentado.
“Tem uns vídeos da gente criança, que meu pai fez aqui na rua, que passava um carro. Era bem calmo. Um lugar muito calmo. Escolar, né. Era uma área de escolas. Não tinha muito carro, não. A gente brincava na rua. Agora, cada prédio ali tem cinco vagas por morador. A [Rua] Paraíba virou uma rua movimentada. É um absurdo isso de cinco vagas, né. Inclusive, naquele tempo, a escola tinha muro baixo, era tudo muro baixo, você via tudo lá dentro. Foi lá pela década de 1990 que subiu tudo. Nos anos 1980 a gente pulava os muros do Bueno [Brandão]. Era até perigosíssimo porque a gente pulava e era cheio de espetos, né. Rolavam até uns acidentes, mas a gente era bem mais livre. A gente interagia com o lado de fora, agora não dá pra ver mais nada”, diz Leonora.
Selma fala que as escolas estaduais Bueno Brandão e Barão do Rio Branco são referências importantes não só para o bairro, mas para a história da família.
“Era linda a escola. Bueno e o Mercado Central eram da mesma época, tinham a mesma arquitetura. Eles chamavam de telha de ardósia, não sei muito bem como é isso, mas na Europa tem muito. Minha mãe foi professora lá e dizia que era infernal porque as paredes de dentro eram de madeira, eram biombos, e iam só até certa altura. Então, era uma barulhada pra dar aula lá. Você escutava os outros professores dando aula. Dizem que era um inferno. Depois, ela aposentou, mas ficou lá anos”.
Leonora ri da história e emenda: “é uma sorte ter o Bueno e o Barão aqui. Um quarteirão todo arborizado, com barulho de crianças, que faz parte do imaginário daqui. Tem também o sinal do Bueno. Antes eu ouvia todos. Agora, só às vezes você ouve um resquício do sinal, de tanto barulho de construção. Antes eu ouvia aqui dentro. Eu acordava de manhã com o sinal, arrumava rápido pra ir pra escola. Eu acordava com o sinal”, se diverte Loló.
Essa questão do barulho é notável na Savassi. Com tradição para cafés, bares, lojas, boates, festivais e carnavais, algumas áreas do bairro parecem sempre agitadas. No entanto, o burburinho do lazer tem sido abafado pelas obras que atravessam paredes e fazem subir muros que ultrapassam as montanhas da cidade. Em 2011, o bairro passou por uma grande obra de reestruturação que mudou as feições da Praça Diogo de Vasconcelos (que todos conhecem como Praça da Savassi), mas pelo menos recebeu uma ciclovia.
Selma lamenta como os prédios e a constância das obras mudaram os horizontes visuais e sonoros do bairro. “Eu ouvia de noite, mais tarde, o barulho do trem lá na Praça da Estação. Ouvia aquele apito do trem. E quando tinha carnaval aqui no Minas [Tênis Clube] I, dava pra gente ouvir o batucado daqui de casa também. Agora é obra o tempo inteiro. Ali atrás do meu quarto estão construindo um prédio gigantesco. Em breve eu vou abrir a janela e vou ver um paredão”.
Ela lembra com saudades do tempo em que o bairro tinha só casas e que dava pra sentir, no vento, o cheirinho do pão assado na Padaria Savassi, que deu nome à região. “Era muito gostoso. Ali também era o point, era muito interessante. Eu acho que até continua sendo. Eu gosto de morar aqui”.