Quanto tempo dura um bairro? E uma cidade?
Quem responde é Belo Horizonte, uma metrópole em constante e frenética transformação. Com apenas 120 anos e cerca de 2,5 milhão de habitantes, a jovem capital de Minas possui até quatro gerações debaixo dos seus tecidos. É o que apontam arquitetos e historiadores.
Tijolos, pisos, azulejos, ornamentos, fachadas, histórias. Nem sempre contadas pelas vozes de quem construiu com as próprias mãos os edifícios que subiram e desceram montanhas do antigo Curral Del Rei e criaram, assim, os belos horizontes da nova-velha sede política e econômica do estado.
Segundo análises de estudiosos, a cada 25 anos, a renovação arquitetônica acelerada de Belo Horizonte atua substituindo imóveis e tensionando pela modernização e uniformização da paisagem – o que muitas vezes instala processos perversos, como a gentrificação e a verticalização.
Os bairros de Santa Tereza, Lagoinha e Savassi não escaparam desses processos, que se dão de forma ainda mais intensa nos arredores da Avenida do Contorno, um dos marcos estruturais do município. Destes três bairros, somente Santa Tereza segue em franca resistência contra a especulação imobiliária. Já a Savassi é um exemplo da uniformização da paisagem e da gentrificação acentuada. Diferente dos dois, a Lagoinha convive com o abandono.
Observando todas estas nuances, “Quanto tempo dura um bairro” surge com a intenção de contribuir para a valorização e para a difusão da potência cultural, simbólica e urbanística do conjunto arquitetônico e afetivo de BH. Propõe reflexões sobre o tombamento e seus processos, enquanto realiza uma cartografia do patrimônio material e imaterial de regiões tradicionais de Belo Horizonte. Mais que um manifesto pela conservação do patrimônio e da memória, o projeto é um registro inédito do conjunto urbano desses bairros e também um convite para olhar a cidade a partir de uma investigação sensível, por meio de fotos, vídeos e textos que perpassam todos estes temas, sempre levantando a questão da permanência.
Idealizado pela fotógrafa Mirela Persichini e pelo designer Philippe Albuquerque, que moram nos bairros Lagoinha e Santa Tereza, respectivamente, QTDB surgiu a partir de uma história pessoal. Em 2014 , Philippe recebeu um comunicado informando que a casa em que morava, em Santa Tereza (o número 1.145 da Rua Salinas), seria um dos 288 imóveis indicados ao processo de tombamento do Patrimônio Histórico de Belo Horizonte. Além destes, quatro praças do bairro também foram indicadas. O comunicado dizia que aqueles imóveis iriam conformar o tombamento do conjunto urbano do bairro.
Este acontecimento foi recebido como um chamado, tendo em vista que o tema já se relacionava com outros trabalhos do grupo – que há cinco anos realiza produções audiovisuais que tratam sobre espaços públicos afetivos da cidade – e serviu de ponto de partida para um projeto audiovisual de registro dos imóveis e praças integrantes da lista.
Cruzando ruas, atravessando memórias
Caminhadas a pé foram escolhidas como estratégia para ver e sentir de perto o que a pressa da vida em metrópole não permite. Começamos por Santa Tereza, que está localizado na zona leste de Belo Horizonte, e mantém uma resistência bairrista, com casas, quintais e árvores, tradicional boemia e ativa vida comunitária. Ao longo de três meses, as ruas do bairro foram percorridas e, além de personagens e agentes da vida local, as fachadas, arabescos, intervenções urbanas, e diversos detalhes arquitetônicos, foram capturados em fotografias e vídeos.
Uma conta no Instagram foi a alternativa encontrada inicialmente para compartilhar estas imagens e ultrapassar os limites do bairro, trazendo às ruas virtuais cenas do espaço urbano que há tempos deixaram de ser observadas.
Durante o processo, surgiu a ideia de retratar as fachadas dos imóveis em um livro, por meio de uma composição tipológica de nove fotos. Elas vêm acompanhadas de uma legenda que indica os respectivos endereços – inspiração no caráter arqueológico e no olhar de Hilla e Bernd Becher, que revolucionaram a fotografia e a arte contemporânea. Depois, veio a alternativa de incluir, na parte impressa do projeto, mapas que ajudarão a contextualizar os territórios e os objetos registrados.
Todas estas buscas e encontros estimularam o interesse em outros bairros tombados da cidade e, se tratando de um projeto afetivo, Lagoinha e Savassi não podiam ficar de fora.
A partir da definição desse recorte geográfico, patrimonial, simbólico e afetivo, surgiu a crônica fotográfica “Quanto tempo dura um bairro”, que só se completou com o registro de imóveis desses dois bairros tradicionais que também ficam muito próximos do centro de Belo Horizonte.
Localizada na região sul de BH, a Savassi possui ainda hoje casas datadas da época da fundação da cidade que convivem com grandes edificações, em uma das maiores zonas de compras e entretenimento da capital.
Em contrapartida, o bairro da Lagoinha, na regional noroeste, sofre com o abandono e o conflito que o grande complexo de vias e viadutos trouxe há anos, intervindo na arquitetura e no cotidiano urbano desse território bucólico e cheio de memórias.
Há enormes contrastes entre esses três territórios: Santa Tereza, Lagoinha e Savassi; e é a partir deles que o grupo investiga memória e permanência, arquitetura e urbanidade, trazendo para o centro do projeto a pergunta: Quanto tempo dura um bairro?
Tijolo por tijolo, num desenho… coletivo
Além dos registros imagéticos, o projeto traz também um ensaio de apresentação, escrito pela jornalista Júlia Moysés, e o artigo “A vida na escala da rua”, redigido pela fotógrafa e arquiteta urbanista, Priscila Musa, em conjunto com o antropólogo e produtor cultural, Rafael Barros.
“Quanto tempo dura um bairro?” conta, ainda, com o registro textual de entrevistas feitas pela jornalista Fernanda Brescia, que apresenta agentes que conferem vida a essas regiões: moradores, trabalhadores, transeuntes; e toda a sorte de encontros que trazem a sensação de poder ver um pouco do que se passa do lado de dentro das janelas das casas. Uma defesa da importância de se ouvir personagens que tiveram suas histórias sistematicamente soterradas; e de se reconstruir memórias, para além das fachadas e do que nossos olhos (não) veem.
Para tornar este trabalho mais acessível realizamos uma parceria com o coletivo BH ao pé do ouvido que realizou caminhadas audio-descritas na Lagoinha e Savassi, a caminhada em Santa Tereza não foi realizada por conta da pandemia de Covid-19, mas vai virar um podcast produzido pelo coletivo [Anita Rezende, Ana Cláudia Xavier e Sofia Sepúlveda]. Com o mesmo objetivo, o Guilherme Capanema desenvolveu o site, que funciona como um registro e torna esse trabalho mais acessível.