por Júlia Moysés

Existem bairros que costumam entregar-se desavergonhadamente ao que tudo transforma, mantendo apenas em cantos esquecidos suspiros do que foram. 

Conformam-se em durar infinitamente o tempo do próximo negócio. Têm outros, porém, que não se conformam nunca. Seguem em permanente disputa desigual, insistindo em não caber em delimitações e negociações estabelecidas à sua revelia. Persistem em ter mais contornos, mais becos e mais esquinas do que lhe foram permitidos. Têm bairros que desejam não ver a cidade apenas do alto. São aqueles que querem para si as exclamações que só as singelezas provocam, porque você estava passando naquela rua e, de repente, reparou naquele azulejo, naquela varanda, naquela casa, na praça, em um prediozinho (esses bairros têm prediozinhos). Têm bairros que respiram, resistem, ressurgem, transbordam. 

Nesses bairros, a memória não se afoga em concreto. Ela corre por entre as ruas, deita nos bancos, sobe em árvores, entra pelas frestas dos muros, torce o nariz para invencionices, sofre ameaças, leva bordoadas daquelas, responde atrevida, passa despercebida (imaginem, logo ela), sorri para as casas. Gosta, sobretudo, das casas. De brincar em suas trepadeiras, de revelar-se em seus detalhes presentes e ausentes, de espiar por suas janelas as histórias de dentro. Nesses bairros, memória é dia a dia.  

Certa vez, a memória de um bairro com nome de santa espiava pela janela quando um envelope chegou informando que a casa seria tombada. Foi quem o abriu que teve a ideia de refazer o traçado, justamente, vejam só, da memória. De correr como ela por entre as ruas, de deitar nos bancos, de sorrir para as casas, de reparar e exclamar diante das singelezas. A ideia, que virou de dupla, virou também uma cartografia fotográfica e afetiva de quase mil casas, praças e prediozinhos.

O olhar da objetiva revela a imagem do que permanece e do que se deteriora, e a quase impossibilidade de cliques sem carros. Aquilo que não está nas fotos são  as histórias de dentro, dos moradores e moradoras que, também de posse de suas cartas, ora mostravam-se orgulhosos, ora com raiva do destino vaticinado. Tombamento, afinal, também é algo decidido à revelia do bairro. Um bairro que, cotidianamente, e nas próximas páginas, respira, resiste, ressurge e transborda. Que durará o tempo que, da luta de suas contradições, sua memória – o encontro de suas lembranças e de seus esquecimentos – continuar emergindo.

por Júlia Moysés

Existem bairros que costumam entregar-se desavergonhadamente ao que tudo transforma, mantendo apenas em cantos esquecidos suspiros do que foram. 

Conformam-se em durar infinitamente o tempo do próximo negócio. Têm outros, porém, que não se conformam nunca. Seguem em permanente disputa desigual, insistindo em não caber em delimitações e negociações estabelecidas à sua revelia. Persistem em ter mais contornos, mais becos e mais esquinas do que lhe foram permitidos. Têm bairros que desejam não ver a cidade apenas do alto. São aqueles que querem para si as exclamações que só as singelezas provocam, porque você estava passando naquela rua e, de repente, reparou naquele azulejo, naquela varanda, naquela casa, na praça, em um prediozinho (esses bairros têm prediozinhos). Têm bairros que respiram, resistem, ressurgem, transbordam. 

Nesses bairros, a memória não se afoga em concreto. Ela corre por entre as ruas, deita nos bancos, sobe em árvores, entra pelas frestas dos muros, torce o nariz para invencionices, sofre ameaças, leva bordoadas daquelas, responde atrevida, passa despercebida (imaginem, logo ela), sorri para as casas. Gosta, sobretudo, das casas. De brincar em suas trepadeiras, de revelar-se em seus detalhes presentes e ausentes, de espiar por suas janelas as histórias de dentro. Nesses bairros, memória é dia a dia.  

Certa vez, a memória de um bairro com nome de santa espiava pela janela quando um envelope chegou informando que a casa seria tombada. Foi quem o abriu que teve a ideia de refazer o traçado, justamente, vejam só, da memória. De correr como ela por entre as ruas, de deitar nos bancos, de sorrir para as casas, de reparar e exclamar diante das singelezas. A ideia, que virou de dupla, virou também uma cartografia fotográfica e afetiva de quase mil casas, praças e prediozinhos.

O olhar da objetiva revela a imagem do que permanece e do que se deteriora, e a quase impossibilidade de cliques sem carros. Aquilo que não está nas fotos são  as histórias de dentro, dos moradores e moradoras que, também de posse de suas cartas, ora mostravam-se orgulhosos, ora com raiva do destino vaticinado. Tombamento, afinal, também é algo decidido à revelia do bairro. Um bairro que, cotidianamente, e nas próximas páginas, respira, resiste, ressurge e transborda. Que durará o tempo que, da luta de suas contradições, sua memória – o encontro de suas lembranças e de seus esquecimentos – continuar emergindo.

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